Composição de classe e teoria do partido na origem do movimento de conselhos operários – Sergio Bologna

 

Estrutura da força de trabalho e composição de classe na Alemanha antes da Primeira Guerra Mundial

Uma parte substancial e significativa da liderança de chão de fábrica no movimento dos conselhos operários alemão era composta de trabalhadores especializados na engenharia industrial.

Uma vez que essa seção de trabalhadores assumiu uma grande dimensão social e política em 1918, é legítimo perguntar se foi a estrutura da indústria alemã no pré-primeira guerra que contribuiu para a predominância desse tipo de força de trabalho, e se há alguma relação entre a posição desses trabalhadores na produção e sua adesão política ao sistema de conselhos operários.

A engenharia industrial da Alemanha pré-guerra ainda não tinha alcançado um nível de concentração e racionalização como o dos setores de mineração, siderurgia e elétrico. Ela era composta principalmente de fábricas médias, empregando entre 1.000 e 5.000 trabalhadores, distribuídas pelos centros tradicionais do industrialismo alemão: Renânia-Vestfália, Wirttenberg, Saxônia, a região de Berlim, a região de Hamburgo, Oldenburgo e Bavária. Era o mais novo setor industrial alemão. Seus principais produtos eram bicicletas, motos, ferramentas para máquinas, máquinas para escritório, máquinas de serra, ferramentas e carros. A especialização ainda não era muito avançada. Na verdade, quase todas as grandes fábricas de bicicletas e, mais tarde, de motos também produziam máquinas para escritório e de serra. Apenas o ramo alemão da Singer em Hamburgo começou realmente sua atividade exclusivamente como produtor de máquinas de serra – e isso aconteceu porque ele era subsidiário de uma corporação dos EUA que já tinha um monopólio no mercado. A indústria automobilística ainda não havia ganhado a importância que iria ganhar mais tarde (nos Estados Unidos isso aconteceu por volta de 1910-12, mas na Alemanha isso só aconteceu em 1924, com Opel). A produção de carros era executada em escala limitada em fábricas de tamanho médio e pequeno. Na verdade, o que se desenvolveu muito rápido e com sua própria autonomia foi a indústria que fornecia produtos auxiliares para a indústria de automóveis; esse setor se caracterizava pela rápida concentração e pela racionalização. Foi nesse setor, e especificamente na produção de equipamentos de ignição, que Robert Bosch fez sua fortuna. Em 1913 ele já empregava 4.700 trabalhadores em sua fábrica em Stuttgart e em outros estabelecimentos menores. Esse tipo de setor – que permitiu à engenharia industrial alemã chegar a uma posição de liderança mundial no período anterior à Primeira Guerra – tinha uma força de trabalho especialmente qualificada. Ele empregava um grande número de técnicos especializados; seus gastos em pesquisa e desenvolvimento eram maiores do que em outros setores, e ele se desenvolveu com um aparelho de marketing extremamente dinâmico. Consequentemente, os salários também eram maiores. Bosch foi o primeiro empregador alemão a introduzir a jornada de trabalho de oito horas em 1906, como uma concessão do empregador, e, então, o sábado livre em 1910. Foi nessa época que a Alemanha assistiu o desenvolvimento de setores industriais como a engenharia leve, as ferramentas de precisão, a ótica e a eletromecânica. Se seguirmos a história das firmas envolvidas nesses setores, vemos que elas fazem saltos adiante notáveis: essas são as mesmas firmas que impuseram no mercado mundial a qualidade altíssima característica dos produtos alemães, tendo se tornado capazes de confrontar seus competidores ingleses e americanos, que estavam partindo de uma base financeira mais sólida. Isso se devia não tanto aos talentos empresariais dos capitalistas alemães individualmente, mas mais ainda à notável habilidade profissional de uma força de trabalho qualificada com a mais avançada tecnologia, com ferramentas especializadas, e que estavam diretamente envolvida com as questões em torno da modificação dos sistemas de trabalho. Nesse tipo de setor a figura predominante era a do operário-inventor, ou pelo menos do operário colaborando de maneira muito próxima com técnicos e engenheiros de planejamento. Um resultado dessa situação na Alemanha foi o sucesso da instrumentalização industrial e da indústria de ferramentas para máquinas. Enquanto a agricultura e a indústria têxtil alemãs estavam nas agonias da recessão e da crise, a Alemanha estava produzindo as melhores máquinas têxteis e para agricultura do mundo.

Vamos analisar os trabalhadores que estavam empregados nesses setores altamente dinâmicos: seu trabalho metalúrgico exigia uma enorme precisão; eles participavam diretamente nas modificações do produtos que produziam, assim como transformavam suas próprias técnicas de trabalho. Foi isso o que produziu o sucesso de setores como a indústria aeronáutica alemã, que em 1913 foi considerada a líder mundial. Assim, parece natural encontrar nesses setores toda uma série de iniciativas paternalistas da parte das companhias no que dizia respeito a maiores salários, jornadas de trabalho menores e mesmo a participação nos lucros (um método de esvazias as exigências dos trabalhadores de antemão que os patrões da Alemanha Ocidental também praticariam no período de 1950-65).

Capitalistas individuais foram forçados a fazer as coisas de modo a manter forças de trabalho qualificadas e estáveis. Eles facilitavam a cristalização de aristocracias operárias e buscavam reduzir tanto quanto possível a mobilidade da força de trabalho, especialmente no interior do mesmo setor.

Posteriormente, algumas dessas companhias receberiam um forte impulso com a guerra. Assim, por exemplo, a Zeiss de Iena e a outra grande companhias ótica, a Leitz, se desenvolveram sustentadas por contratos governamentais para a fabricação de instrumentos de mira; enquanto isso, a Bosch lucrou de maneira parecida com a produção de acumuladores e de instrumentos eletromagnéticos necessários para o equipamento militar da época. As indústrias óticas se localizavam principalmente em Wirttenberg e na Saxônia, enquanto a engenharia leve, a engenharia de precisão e as industrias eletromecânicas se concentraram gradativamente em torno de Berlim.

Não é acidental que os experimentos no sistema de conselhos operários tenham adquirido suas características políticas e de gestão precisamente nessas três regiões – Wirttenberg, Berlim e Saxônia – em que as ferramentas para máquinas e as industrias óticas e eletromecânicas estavam mais concentradas, i.e., onde operários altamente especializados eram predominantes na força de trabalho em geral. Esses trabalhadores altamente especializados da indústria de maquinaria e ferramentas, com um alto nível de habilidade profissional, dedicados ao trabalho metalúrgico de precisão, habilidosos no uso de ferramentas (tanto manuais quanto de máquinas) e colaborando com técnicos e engenheiros em modificações dos processos de trabalho, estavam, pela natureza de sua posição, materialmente mas suscetíveis a projetos políticos e organizacionais como os conselhos operários, i.e. conselhos de autogestão da produção. O conceito de autogestão operária não poderia ter tido um apelo tão forte para o movimento de conselhos operários alemão sem a presença de uma força de trabalho intrinsecamente ligada à tecnologia dos processos de trabalho, com um forte sentimento de valores profissionais e naturalmente inclinados a dar um alto valor a sua função como “produtores”. O conceito de controle operário como um sistema de administração era um conceito que via o operário como um produtor autônomo, e a força de trabalho da fábrica como uma entidade autossuficiente. Ele só via a relação entre os operários e empregadores individuais ou companhias, e – como veremos – ele desconfiava da “política” em um sentido amplo, i.e. a relação entre organização e poder, partido e revolução.

Essa relação entre estruturas de atividade e atitudes político-ideológicas específicas e determinantes não é uma nova descoberta, mas vale a pena aponta-la, em parte porque a Alemanha nos dá uma ilustração bastante substancial dessa relação, e em parte para servir como uma lembrança para aqueles com um gosto por discussões confusas e inconclusivas sobre a “consciência de classe”, como se essa última fosse um fato espiritual ou cultural. Outra coisa que deveria ser apontada é que o elemento da autogestão foi o aspecto mais significativo no movimento de conselhos alemão, mas não era de maneira nenhuma o único aspecto significativo em termos de prática e projeto revolucionários. Ele apenas constitui seu traço mais característico.

Outro elemento do movimento alemão, diretamente ligado ao primeiro, era o envolvimento de praticamente toda a camada de técnicos. Nesse caso, também, a posição material de um setor específico da força de trabalho na engenharia industrial levou a um escolha política específica. Na época, os técnicos e engenheiros ainda não haviam se tornado os funcionários da organização científica da exploração, uma vez que o taylorismo só foi adotado na Alemanha no período pós-guerra. No entanto, as companhias alemãs em geral, e não apenas aquelas no setor de engenharia, tinham um grau bastante avançado de organização administrativa e burocrática. O boom industrial alemão antes da Primeira Guerra foi devido fundamentalmente a duas condições objetivas: o uso da tecnologia e a aplicação de pesquisa avançada (o número de patentes registrado foi enorme) e a eficiência extrema do aparelho administrativo e burocrático. Isso se tornou possível pela existência de infraestruturas básicas tais como a organização de uma educação profissionalizante muito mais avançada e bem articulada em comparação com a de outros países: uma ligação próxima entre pesquisa universitária e aplicações industriais; a tradição da eficiência administrativa que era típica da burocracia prussiana – tanto antes quanto depois de Bismarck – que durante o boom industrial pré-Primeira Guerra, se difundiu até o nível das fábricas. Com base nos relatos escritos por engenheiros para o movimento de conselhos operários e publicados na sua imprensa, sabemos que a organização burocrática (i.e. administrativa e de contabilidade) das companhias alemãs era muito eficiente e foi acompanhada nesse período por um grande aumento porcentual no emprego de trabalhadores de colarinho branco por oposição a trabalhadores de colarinho azul.

Tradicionalmente, a burocracia alemã sempre executou fielmente ordens de cima. Isso continuou sendo verdadeiro na indústria, mas a posição executiva de técnicos e contadores combinada com a posição material e tecnicamente condicionada dos técnicos na engenharia industrial da época tendeu a produzir uma homogeneização geral da força de trabalho nas fábricas, que em um dado momento (e por um curto período de tempo) conseguiu se transformar em uma unidade política. No tipo de fábrica descrito acima não faz sentido procurar por uma classe de gestores com poderes de decisão que estivesse localizada entre os proprietários e a classe operária. Desse ponto de vista, com todo o seu dinamismo extraordinário, a engenharia industrial alemã tinha uma estrutura “atrasada” no que dizia respeito ao estado de desenvolvimento industrial e tecnológico representado pelo fordismo, i.e. pela indústria de produção em massa e bens de consumo. Essa natureza singular da sua força de trabalho, caracterizada por valores profissionais elevados, e sua característica estrutura fabril, não eram, na verdade, uma vanguarda no que diz respeito à organização industrial capitalista. Um testemunho especialmente marcante disso vem do próprio Henry Ford, que, em sua autobiografia, despreza esse tipo de indústria de maquinaria, dizendo que no momento em que ele estava para introduzir a esteira rolante e a linha de montagem, a engenharia industrial como um todo estava parada, atrasada, e não respondia à ideia de mudanças na organização do processo produtivo e na modificação da composição orgânica do capital. Resistindo aos tipos de inovação propostos por Ford, a engenharia industrial alemã mostrou uma determinação aberta de defender um tipo de força de trabalho em particular e, portanto, um tipo de “aristocracia operária”. Essa resistência podia ser vista na direção, entre os empregados individuais, assim como entre técnicos e operários. O modelo da firma de engenharia de média escala que manteve sua capacidade para continuar a fornecer novos produtos e que, depois de períodos mais ou menos longos de experimentação e planejamento, estava começando a embarcar em uma produção em série (mas não em uma produção de massa), seria destruído pelo fordismo exatamente em seu componente fundamental – o do trabalho. As inovações de Ford eram apenas um avanço qualitativo em termos de maquinaria; a longo prazo, eles representaram a extinção progressiva do tipo de trabalhadores que estava ligados a seu tipo de máquina, a sua companhia e a seu ofício. O operário altamente qualificado da indústria de engenharia deveria dar lugar ao operário moderno de linha de montagem, que era pouco qualificado, sem raízes, altamente móvel e substituível. Assim, é importante manter em mente que muito antes que a “aristocracia operária” alemã tivesse se tornada a “vanguarda revolucionária”, muito antes de seu “batismo de fogo”, ela já estava objetivamente condenada à extinção pelas vanguardas do capitalismo.

O fordismo não só alterou profundamente a estrutura interna da força de trabalho ao substituir o operário especializado, ou a “aristocracia operária”, pelo operário moderno da linha de montagem, o operário de massa; ele também alterou consideravelmente tanto a estrutura salarial quanto a perspectiva do trabalho (e do capital) em relação ao salário. Para Taylor, o salário como incentivo estava diretamente ligado à posição do operário individual em uma fábrica individual; isso derivava da abordagem individualista e atomista típica da filosofia de Taylor. Para Ford, no entanto, o salário se tornou uma quantidade geral de lucro a ser usada como meio de controlar a dinâmica do sistema; ele era uma quantidade geral de capital a ser injetada nos quadros gerais do desenvolvimento planejado. Em 1911, as ideias de Ford não eram nada além de descobertas intelectuais de um empresário individual. Foi preciso a ameaça de uma subversão geral das relações de poder na fábrica (a ameaça do movimento dos conselhos operários, mesmo em sua versão de co-gestão, representado para o capital como um todo) para que elas se tornassem a estratégia do capitalista coletivo – i.e. a “revolução da renda” keynesiana. Essa ameaça não era porque seus projetos para uma “nova ordem” industrial estariam bastante avançados, ou porque o movimento dos conselhos operários tinha uma base tão forte entre a aristocracia operária, i.e. porque ele teria colocado em perigo a integração planejada da classe ao sistema. A ameaça, antes, se devia ao fato de que ele era um movimento de classe internacional. Aqui, a classe trabalhadora como um todo estava tentando, pela primeira vez na história, inverter a tendência do processo capitalista de desenvolvimento, tanto nos setores atrasados quanto nos avançados, tanto no chão de fábrica quanto na sociedade como um todo. Não era tanto seu caráter organizativo, político-ideológico ou sociológico, mas seu caráter internacional que constituiu o aspecto revolucionário do movimento dos conselhos operários. Foi um 1905 mundial, em que apenas o elo mais fraco se rompeu.

Para reconstruir o movimento de conselhos operários e defini-lo em termos políticos, devemos seguir os ciclos das lutas da classe trabalhadora em um nível internacional, assim como a composição de classe na zona capitalista.

Então, retornemos a nosso exemplo no caso da Alemanha. A discussão a respeito da estrutura da força de trabalho técnica e manual e sua distribuição geográfica é absolutamente inadequada e corre o risco de se tornar incorreta e enganadora a não ser que investiguemos primeiro a composição política de classe que existia na Alemanha. Podemos apresentar o seguinte como um ponto metodológico geral: o atraso não significa necessariamente atraso na classe trabalhadora. Se, ao analisar as lutas políticas, mantemos a distinção comum entre países capitalistas avançados (EUA, Inglaterra, Alemanha) e atrasados (Rússia, Itália), corremos o risco de gerar confusões e esquematismos. No nível da organização subjetiva, as características específicas da luta na Rússia são tão avançadas quanto em qualquer outro país – se não mais. Enquanto nos períodos de 1904-06, 1911-13, e 1917-20 nos deparamos com um capital que se define por grandes desequilíbrios entre zonas avançadas e atrasadas em termos de atividade política de classe, encontramos um grau considerável de homogeneidade de classe em todos os países. Podemos falar, assim, de uma série de ciclos de luta começando no período de 1904-06, que foram de natureza internacional. A característica específica desse primeiro ciclo não pode ser facilmente fixada em termos cronológicos precisos, mas é claramente marcada: é a greve de massas que surge de uma situação de luta endêmica e levando a ações violentas insurrecionais. O melhor exemplo disso são os EUA. Começando em 1901, uma série de greves de massa violentas sacodem toda a estrutura industrial dos EUA. Com seu centro, seu polo de classe, nos mineiros das Montanhas Rochosas, essas lutas se difundiram em primeiro lugar entre os operários de siderurgia, da indústria têxtil e dos transportes, mas, acima de tudo, nos operários da construção civil. Em 1905, no ápice da luta, enquanto os sovietes estavam nascendo na Rússia, nos EUA o Operários Industriais do Mundo (IWW) foi formado; a organização proletária mais radical até hoje nos EUA, a única organização revolucionária antes do surgimento do movimento afro-americano. Hoje, há muito a ser aprendido com e dito sobre o IWW. Ainda que muitos de seus militantes fossem anarquistas e anarco-sindicalistas que migraram para os EUA da Europa oriental e ocidental, o IWW não pode ser simplesmente reduzido a um equivalente americano do anarco-sindicalismo francês.

O que havia no IWW que era tão extraordinariamente moderno? Embora ele fosse baseado em um antigo núcleo de classe, a Federação de Mineiros do Oeste, o mérito do IWW foi que ele tentou organizar o proletariado americano nos termos de suas características próprias. Ele era primeiramente um proletariado imigrante, e, portanto, uma mistura de grupos étnicos que só poderiam ser organizados de uma certa maneira.  Em segundo lugar, era um proletariado móvel, um fato que pesava muito contra a identificação com qualquer emprego ou habilidade em particular, e que também pesava contra que os trabalhadores desenvolvessem ligações com fábricas individuais (mesmo que fosse para toma-las). O IWW tornou a noção de fábrica social uma realidade concreta, e ele se fortaleceu com o nível extraordinário de comunicação e coordenação possível nas lutas de uma força de trabalho móvel. O IWW conseguiu criar um agitador de um tipo completamente novo: não a toupeira, cavando por décadas em uma fábrica específica ou em um bairro proletário, mas o tipo de agitador que nada na corrente das lutas proletárias, que se move de uma ponta a outra do enorme continente americano, e que surfa na onda sísmica da luta, superando as fronteiras naturais e navegando pelos oceanos antes de organizar convenções para fundar organizações irmãs. A preocupação dos wobblies[1] com trabalhadores dos transportes e estivadores, sua determinação constante em atingir o capital como um mercado internacional, sua compreensão intuitiva do proletariado móvel – empregado hoje, desempregado amanhã – como um vírus de insubordinação social, como o agente da “greve social selvagem”: todas essas coisas fazem do IWW uma organização de classe que antecipou as formas atuais de luta, e era completamente independente das tradições da Segunda e da Terceira Internacionais. O IWW é a ligação direta da Primeira Internacional de Marx com a era pós-comunista.

A violência e a continuidade das greves americanas nas primeiras duas décadas do século mostram o quanto era politicamente correta a intuição de Marx, trinta anos antes, quando queria que a central da “sua” Internacional fosse deslocada para Nova York. É difícil localizar o ponto alto dessas lutas, mas a trajetória do ciclo é vagamente análoga à europeia e à do proletariado russo. Um momento especialmente notável foi a luta de 5.000 caminhoneiros em Chicago, que terminou em confrontos com a polícia ao custo de 20 mortos e 400 feridos.

O ano de 1904 assistiu à primeira greve geral da Itália.

Em 3 de janeiro de 1905, os operários da fábrica de Putilov, em São Petersburgo, entraram em greve e a Revolução Russa de 1905 começou.

Nos primeiros meses do mesmo ano, a grande greve de mineiros alemães explodiu na minha de Bruchstrasse e se espalhou pelo Ruhr. Essa luta na Alemanha foi precedida pelas greves dos operários têxteis e da indústria de papel em 1903 e 1904. Os trabalhadores nesses setores tinham as piores condições e os piores salários da indústria alemã. Na indústria de papel aconteceu a maior incidência de casos de invalidez permanente por acidentes de trabalho, e os famosos sindicatos alemães eram mais ou menos ausentes dos setores têxtil e de papeis: esses trabalhadores só conseguiriam obter seus primeiros contratos em 1919, depois da derrubada da monarquia. A greve havia explodido espontaneamente, assim como a greve de mineiros de 1905.

Na composição de classe da Alemanha pré-guerra, os mineiros do Ruhr representavam o setor mais avançado. Esse núcleo da classe operária era, talvez, o único com a habilidade de colocar em movimento todo o tecido social da classe quando entrava em luta. Um caso típico foi a greve súbita e espontânea de 1889, que imediatamente se transformou em uma greve de massas. Os sindicatos apenas se juntaram a isso no último momento. O Kaiser e Bismarck tiveram que intervir diretamente para dar um fim à luta diante da incapacidade organizacional e de negociação dos sindicatos, e a resistência persistente oferecida pelos barões do carvão. Os mineiros tiveram sucesso em forçar seus empregadores a aceitar todas as suas exigências, exceto a mais importante, i.e. a jornada de trabalho de oito horas, para poder incluir o tempo que levavam no transporte para e do ponto de trabalho. Na verdade, a luta de 1905 começou precisamente com essa exigência. Como um resultado da mineração em larga escala, as minas se tornaram mais profundas e o tempo necessário para descer e subir das minas havia praticamente dobrado.

A crise da indústria de mineração havia forçado mais ou menos 9.000 mineiros a abandonar o distrito; o número de doenças de trabalho mostrou um aumento assustador; mas, mais do que tudo, os mineiros não estavam preparados para tolerar a presença de capatazes. O sindicato aprendeu com a surra que levou em 1889 – que custou a ele grande parte do nível organizativo (agora, apenas 40% dos mineiros eram membros do sindicato), e inicialmente buscou localizar a luta. Mas a greve passou muito rapidamente a outras áreas: em dez dias, 220.000 mineiros estavam em greve, de um total de 270.000 no distrito. As exigências haviam sido recusadas pelos barões com sua arrogância de costume. Eles não poderiam tolerar nenhum desafio ao seu princípio de “eu sou o chefe aqui”. Os traços da greve de mineiros alemã adiantavam os traços das grandes lutas do período dos conselhos operários. Dois são especialmente notáveis: a não-violência da luta (até a imprensa burguesa elogiou o comportamento ordeiro dos mineiros), e as exigências a respeito das relações de poder no local de trabalho. Por um lado, vemos a grande sociabilidade da luta (que, também nesse aspecto, foi homogênea com a grande comunicabilidade das greves de massas nos Estados Unidos, Itália e Rússia), e, por outro, as exigências ainda estavam voltadas para os capitalistas individuais ou grupos de capitalistas em um determinado setor. O que isso queria dizer era que, para os mineiros alemães, o poder tinha que ser mudado, antes de mais nada, no local de produção. Em outras palavras, mesmo no mais avançado polo de classe, encontramos a mesma ancoragem característica da atividade subversiva ao local de produção estritamente definido. É interessante notar que, mais uma vez, a força real nas negociações foi o governo, representado pelo secretário de estado Conde von Posadowsky. Um seguidor fiel de Bismarck e de seu “socialismo de Estado”, o conde imediatamente passou medidas legislativas que satisfaziam substancialmente as exigências dos mineiros a respeito das horas de trabalho, e instituíram “comitês de trabalho” em minas que empregavam mais de 100 pessoas. Essa instituição antecedeu em muito pouco tempo os “comitês internos” do mesmo tipo na Itália. Em todo o comportamento do governo, podemos ver as características que iriam reaparecer mais tarde. Na Alemanha, os interesses do capitalista coletivo eram protegidos pelo Estado ou, em 1918, pela socialdemocracia que estava chegando ao poder. Em 1905, a iniciativa de introduzir representantes dos trabalhadores na fábrica veio do capital. Ela estava muito longe de alguma coisa parecida com uma co-gestão: eles eram apenas comitês que deveriam lidar com disputas locais para evitar que elas se tornassem lutas abertas que poderia eventualmente levar a uma luta geral. De maneira parecida, em 1920, sob a pressão do movimento revolucionário, o governo de coalização socialdemocrata teve que intervir contra os projetos de socialização que passariam todo o poder nas fábricas aos conselhos operários, com a lei do Betriebsrate.

A greve do Ruhr não encerrou o período de greves de massas na Alemanha: em Janeiro de 1906, uma greve geral política paralisou as fábricas e o porto de Hamburgo – essa foi uma greve que Rosa Luxemburgo definiu como “o teste geral da insurreição”.

Lidamos em alguma medida com a greve de mineiros para conseguirmos identificar o polo de classes mais avançado na Alemanha no período pré-guerra. Infelizmente, não pudemos dispor de estatísticas separadas para os setores industriais específicos para reconstruir a totalidade da composição de classe Alemã em relação aos movimentos em luta. Os seguintes números totais sobre as greves pelo menos confirmam a afirmação de que o período de 1904-06 representa um ciclo bastante distinto de lutas: em 1903 houveram 1.347 greves, 86.000 grevistas, com 7.000 fábricas envolvidas; em 1904 houveram 1.870 greves, com 113.000 grevistas e 10.000 fábricas. Em 1905 foram 2.400 greves, com 400.000 grevistas, afetando 14.000 fábricas; em 1906 o número de greves foi de 3.000, o número de grevistas foi de 270.000, e o de fábricas 16.000; em 1907, goram 2.200 greves, com 190.000 grevistas e 13.000 fábricas. No ano seguinte todos os números foram reduzidos em dois terços. É interessante notar como se deu mudança ao longo de 1905-06: comparado com 1905, o número total de greves em 1906 não tem a massa sólida de 200.000 grevistas do Ruhr; ainda assim, o número de greves aumenta em 30% e o número de fábricas em 13%. Da mesma maneira, em 1907: se comparado a 1905, o número de greves cai em torno de 52% , enquanto o número de greves caiu apenas 8% e o número de fábricas em torno de 8-9%. O que isso quer dizer é que a luta se difundiu do grande polo de classe representado pelos mineiros do Ruhr para fábricas de médio porte, afetando assim toda a fábrica social do capital alemão. Foi o impulso inicial gerado pelos mineiros que conseguiu colocar em movimento o mecanismo de luta nas fábricas de engenharia, caracterizadas pelo paternalismo e pela aristocracia operária. A presença massiva de 200.000 mineiros do Ruhr na composição política de classe da Alemanha e a presença dominante de setor de aço e carvão na geografia industrial alemã pode ser comparada à posição ocupada pelos operários da FIAT e pelo capital da FIAT na Itália. Nos anos seguintes a 1905, no entanto, toda uma série de setores passou por uma expansão e a importância desses 200.000 mineiros do Ruhr foi neutralizada, especialmente pela criação de grandes centros industriais na região de Berlim, no triângulo de Leipzig-Dresden-Chemnitz, em Wirttenberg, assim como nas proximidades dos portos de Hamburgo, Kiel e Bremen. Assim, no terceiro ciclo de lutas, as lutas decisivas do período de 1917-1920, esses outros polos de classe seriam os primeiros a fazer avançar a luta, primeiro Berlim e os portos, depois a Saxônia, e finalmente o Ruhr se juntou a eles.

Passando da composição política de classe à estrutura da força de trabalho, devemos reforçar que os mineiros do Ruhr e os operários qualificados partilhavam um elemento comum que era muito importante, especialmente em termos dos problemas inerentes à modificação da composição orgânica do capital e no processo de inovação necessário para o desenvolvimento capitalista. O trabalho em minas não era facilmente mecanizável. Em curto ou médio prazo era impensável que uma solução tecnológica como a mecanização pudesse transformar drasticamente a estrutura de emprego e de qualificação da indústria de mineração. Em outras palavras, os barões do carvão e do aço perceberam que teriam que continuar vivendo com esses operários porque, dada a situação de pleno emprego, eles não poderiam dispensá-los e substituí-los por operários de um tipo diferente: a solução fordista nas minas (e na indústria de siderurgia) não podia ser facilmente aplicada. Pela mesma razão, os empregadores de engenharia industrial queriam manter seus próprios operários, que eram inclinados a soluções paternalistas, para criar ilhas de privilégio no que diz respeito tanto aos salários quanto às condições de trabalho. Nem os arrogantes e autoritários barões do setor de carvão e aço, nem os patrões paternalistas e esclarecidos do setor de engenharia, conseguiram colocar em movimento a curto ou médio prazo uma política de trabalho diferente da que estavam seguindo. Em outras palavras, a conjuntura de desenvolvimento específica dos dois setores colocava limitações muito rígidas que condicionavam de maneira grave a liberdade dos capitalistas para manobrar e impunha determinadas escolhas a eles. Os patrões poderiam ter trabalhado para modificar todos os outros aspectos das políticas capitalistas, como melhorar a estrutura financeira de suas companhias, acelerar a concentração melhorando sua estrutura técnica e as tecnologias usadas, encontrando novos mercados, criando novos produtos, cooperando (ou não) com os sindicatos e o governo, mostrando mais dinamismo empresarial, favorecendo ou se opondo à colaboração externa como os socialdemocratas no governo, etc. No entanto, mesmo que eles tivessem feito tudo isso, não teriam conseguido fazer nenhuma alteração substancial nas características estruturais de sua força de trabalho. Em minha opinião, e isso é muito importante, porque mostra como a rigidez do sistema industrial alemão foi um dos elementos que tornou a força de trabalho em geral uma variável independente, de modo a constituir, pelo simples fato objetivo de sua existência contínua, uma séria ameaça para o desenvolvimento capitalista na Alemanha.

As considerações acima servem para corrigir o tipo de interpretação que começa com caráter reformista do projeto de autogestão dos conselhos operários, e continua nesse caminho para negar que as lutas tivessem alguma importância revolucionária real, exceto em tempos de retomada do desenvolvimento capitalista. Enquanto de um ponto de vista teórico essa posição está correta, e continua valendo como uma posição estratégica da qual se podem tirar conclusões sobre as lutas dos trabalhadores, correções de um ponto de vista histórico ou, melhor ainda, a determinação histórica dessa posição nos leva a concluir que o movimento do pós-guerra tinha um caráter subversivo. Uma organização operária que apenas repetisse a estrutura da força de trabalho geral na fábrica e que agisse pelos trabalhadores apenas em sua posição e função como produtores, uma organização cujas exigências gerais apenas buscassem manter os trabalhadores como estão na fábrica era uma organização potencialmente mortal para o capital alemão: no fim das contas, ela teria bloqueado a possibilidade de manobrar, retirando do sistema o elemento de flexibilidade que era tão necessário se o desenvolvimento capitalista tivesse que ser resgatado por meio de uma modificação da composição orgânica do capital. Esse tipo de gargalo era precisamente o que o capitalismo italiano confrontava no período anterior ao fascismo, em termos mais ou menos idênticos. Assim, a importância revolucionária de um movimento deve ser calculada com base em uma compreensão do estado historicamente determinado em uma situação específica. A impossibilidade, para o capital alemão, de alterar – em um período de vinte ou trinta anos – a estrutura da força de trabalho, a estrutura salarial, a composição orgânica do capital, deixava a ele poucas escolhas e alternativas que se tornavam uma incapacidade de encontrar soluções políticas alternativas mesmo antes da onda revolucionária de 1918 ou, antes, a falta de soluções que poderiam ser conseguidas através de meios unicamente econômicos de desenvolvimento, ou por uma recuperação reformista das lutas da classe trabalhadora. Por que até uma recuperação dos conselhos operários através de uma organização socialdemocrata foi impossível na Alemanha? Por que a socialdemocracia alemã foi incapaz de encontrar uma solução reformista para a crise política do sistema e por que ela teve que se mostrar puramente como um aparelho de repressão das lutas e das organizações dos conselhos operários? Por que, em 1918, a socialdemocracia alemã teve que abandonar Kautsky e escolher Noske? Uma combinação de socialdemocracia e repressão, i.e. a solução social-fascista, acabou por se mostrar como a resposta para um nível tão alto de luta subversiva. Para esclarecer as coisas, vale a pena observar as soluções muito diferentes adotadas pela classe dominante americana depois da crise gerada pelas lutas de 1904-05. Um dos elementos que favoreceu em grande parte a resposta vitoriosa dos EUA foi a transformação radical que aconteceu nas estruturas de emprego e na estrutura da força de trabalho. De 1905 a 1914, os EUA recebeu nada menos do que 10 milhões de imigrantes. É fácil imaginar o que essa massa de subproletários significava em termos de um exército industrial de reserva e na destruição das estruturas ocupacionais. O meio milhão de trabalhadores estrangeiros presentes na Alemanha (majoritariamente italianos e polacos) eram um número relativamente pequeno em comparação. Não há dúvida de que o gênio da invenção de Ford e a importância estratégica de seus projetos em termos de avanço da mecanização e na organização do salário como uma função do consumo. Mas a contribuição principal da solução fordista foi tornar uma contrarrevolução violenta, como a única saída possível, desnecessária nos EUA. Por uma modificação massiva na composição orgânica do capital, o fordismo também conseguiu realizar uma grande mudança na estrutura de qualificação da força de trabalho. O operário de linha de montagem na Ford era muito diferente do operário qualificado na indústria da engenharia alemã. A sua própria capacidade ser substituído (ele poderia ser um italiano que havia acabado de chegar e não conseguia nem falar “salário” em inglês) queria dizer que ele não tinha a ligação com a fábrica individual que era típica da figura social que havia criado o movimento de conselhos operários na Alemanha, na convicção de que a autogestão era suficiente para criar uma sociedade socialista.

Assim, na Alemanha a situação era diferente. A rigidez do sistema reduzia as margens de manobra, e mesmo a socialdemocracia bernsteiniana representava um perigo objetivo antes da guerra (isso, e não o “autoritarismo” do Kaiser, foi a razão pela qual ela não foi cooptada pelo governo antes do início da guerra). Esses gargalos no sistema forçaram o capital alemão a intensificar sua tendência inerente à crise, impulsionando assim os conflitos intercapitalistas descritos tão bem por Lênin em seu panfleto sobre o imperialismo. Se o SPD queria se juntar ao governo, ele teria que abandonar todas as soluções intermediárias e aceitar totalmente o social-imperialismo. Isso aconteceu em 1914, com a aprovação dos créditos de guerra pelo grupo socialdemocrata. Mas mesmo com isso, como veremos, as coisas não são tão simples como são apresentadas pelos historiadores oficiais do movimento dos trabalhadores quando eles falam de um “traição” dos socialdemocratas.

Depois desse relato dos eventos de 1905 com referência aos pontos altos da classe trabalhadora internacional, é preciso acrescentar muito pouco quando chegarmos ao período do ciclo de lutas de 1911-13. Os mesmos núcleos de classe iniciam a luta e colocam em movimento a classe trabalhadora em vários países. Apenas para lembrar algumas datas: 1911, greve dos operários da ferrovia Harriman nos EUA; 1911-12, lutas dos mineiros da costa da Virgínia do Oeste e a memorável luta dos operários têxteis em Lawrence (mesmo então houve uma forte onda repressiva contra os militantes do IWW); 4 de abril de 1912, massacre dos mineradores de metais preciosos em Lena, na Rússia; junho de 1912, Lênin escreve seu artigo sobre a “retomada da revolução” na Rússia; em 1912, a terceira greve de massa dos mineiros do Ruhr, na Alemanha.

Dessa vez, a luta aconteceu em um momento de alta atividade econômica e depois que os barões do aço e do carvão haviam assinado um acordo que comprometia o capitalista individual a se recusar a empregar por quatro anos qualquer trabalhador que tivesse sido demitido por razões político-disciplinares por outros empregadores do mesmo setor. Na Alemanha, passamos de 155.000 grevistas em 1919 a 400.000 em 1912 e 250.000 em 1913. Esse é o período em que os operários fazem o maior uso dos sindicatos. A filiação a sindicatos salta de 1.800.000 em 1910 para 2.300.000 em 1912. Esse foi o número mais alto desde a virada do século. Mas os operários estavam usando o sindicato sem fetichizar a organização. Como ilustração, em 1911 o número de operários de siderurgia que eram membros de um sindicato socialista era de 133.000; um aumento de 40.000 em relação a 1910. Mas o número de membros que abandonou o sindicato em 1912 foi de 67.000, i.e. uma mobilidade negativa de 75%. Três quartos dos membros eram novos membros. Esses números devem ser citados para desmistificar o mito do fetichismo dos trabalhadores alemães pela organização: para cada membro que permaneceu, três abandonaram. Além disso, com 133.000 membros, o sindicato dos trabalhadores siderúrgicos organizava apenas 25% da força de trabalho empregada nesse setor, comparado com 1905, quando ele organizava 7%. Quando lembramos o grande número de greves nos mesmos anos, se torna imediatamente óbvio que a grande maioria dessas lutas foram espontâneas.

 

A discussão teórica no movimento internacional da classe trabalhadora

 

A década na virada do século foi um período de debate teórico intenso e acalorado no movimento internacional da classe trabalhadora. Obviamente, é impossível lidar aqui com todos os temas centrais. Vou me limitar a retomar alguns, particularmente os que passam pela discussão e planejamento político do movimento dos conselhos operários: a relação entre espontaneidade e liderança, entra tática e estratégia, a relação entre sindicatos e partido. Esses são os temas em torno dos quais se deu a batalha entre as três grandes correntes no movimento da classe trabalhadora: os revisionistas, os revolucionários e os anarco-sindicalistas. Tendo lidado principalmente com as lutas na Rússia, na Alemanha e nos EUA, vou me concentrar principalmente no pensamento de Bernstein, Rosa Luxemburgo, Daniel DeLeon e Lênin. Devemos nos lembrar de que quase todas as obras fundamentais sobre esses problemas foram escritas antes da Revolução Russa de 1905.

Em uma série de artigos na Neue Zeit e em seu principal trabalho, Socialismo Evolutivo, Bernstein toca em um ponto muito importante. Ele afirma que o confronto entre capital e trabalho tinha que ser encarado nos termos de uma relação entre salário e lucros. Dessa observação correta, ele tirava uma série de conclusões que levaram a que o movimento operário perdesse sua perspectiva de classe a respeito da tomada do poder. É impossível compreender porque os seus trabalhos geraram tanta confusão, a não ser que tenhamos em mente que a sua formulação inicial era correta. Deles, Bernstein tirava duas consequência: 1) que a luta sindical, concebida como luta econômica, deveria ter predominância sobre a luta política, de maneira que os sindicatos estivessem acima do partido; e as formas de luta tinham que excluir manifestações de massas para poderem operar no domínio concreto da negociação contratual; e 2) a ação política tinha que dizer respeito à criação de uma rede institucional para esse crescimento ou, em outras palavras, ser a sua sanção jurídica. Podemos dizer que a posição de Bernstein era o “economicismo” como uma teoria geral do movimento de classe. Precisamente por isso, no entanto, ela encarnava um dinamismo e a possibilidade de uma aplicação imediata. Isso foi imediatamente visto pelos líderes das grandes organizações operárias alemãs, que assumiram essa perspectiva e, fazendo isso, deram uma passo adiante das hesitações dos altos sacerdotes do partido (Kautsky) que temiam se afastar da linha ortodoxa. Em razão do peso que as organizações alemãs tinham na Segunda Internacional, essa aceitação imediata dos sindicatos deu às doutrinas de Bernstein uma popularidade e difusão imediatas, mesmo se em alguns países os sindicatos eram muito influenciados pelas teorias do anarco-sindicalismo (que, no entanto, partilhavam com o bernsteinismo sua recusa da organização do “partido” ou a ideia de que ela deveria ser superada). A separação oficial dos sindicatos alemães e da socialdemocracia aconteceu em 1903. Na verdade, foi simplesmente uma declaração de autonomia dos sindicatos em relação ao partido. Claramente, para os revolucionários, o elemento político, a importância do fator “politização” nas lutas operárias, se tornou fundamental no desafio ao bernsteinismo. Eles sentiam a necessidade de retornar à visão estratégica e ao mesmo tempo de formular um tipo de organização, um centro de decisão, que pudesse manter um apego firme à tática e à estratégia. Ela, no entanto, tinha que enfatizar a espontaneidade, como um meio de desafiar as possibilidades institucionais dos sindicatos de controlar o processo de luta nos termos de ações individuais (tática cotidiana) e em sua linha geral. Mas falar de espontaneidade queria dizer usar um termo que era a palavra-de-ordem do anarco-sindicalismo. Era necessário liberar o termo “espontaneidade” de seu conteúdo anarquista, e o termo “política” de suas conotações burocráticas e não militantes. No momento, não apenas os líderes sindicais, mas também líderes dos partidos socialdemocratas, estavam começando a aceitar a perspectiva de Bernstein. Acima de tudo, era necessário começar a falar dos operários não apenas como simples força de trabalho, mas como uma classe política autônoma. Foi difícil vencer esse debate teórico-político nos termos de maiorias nas organizações do partido ou nos termos de melhores argumentos políticos. O que era necessário era um acontecimento político crucial para aumentar o que estava em jogo, e para todos os revolucionários 1905 deu exatamente isso: uma perspectiva de vitória contra o revisionismo.

As primeiras respostas revolucionárias a Bernstein vieram antes de 1905. Elas começaram com Luxemburgo e seu panfleto Reforma ou Revolução? que definia de uma vez por todas o campo de atividade específico do sindicato e seu domínio institucional. De acordo com Rosa Luxemburgo, uma atividade desse tipo “está essencialmente limitada a esforços para regular a exploração capitalista” de acordo com as condições de mercado e “não consegue de maneira nenhuma influenciar no próprio processo de produção”. Ainda assim, ela enfatiza como a atividade econômica do sindicato pode levar a um choque no desenvolvimento capitalista, criando, assim, as premissas para uma crise do sistema. Nesse ponto “a luta de classes política e socialista deve ser assumida mais uma vez com um novo vigor”. A respeito da relação entre salários e lucros, é isso o que Luxemburgo diz: “O fato é que os sindicatos são pelo menos capazes de criar uma ofensiva econômica contra os lucros. Os sindicatos não são nada mais do que a defesa organizada do poder do trabalho contra os ataques do lucro. Eles exprimem a resistência oferecida pela classe trabalhadora à opressão da economia capitalista”. A luta entre salários e lucros “não acontece no azul do céu, ela acontece nos limites bem definidos das leis salariais. A lei salarial não é rompida pela atividade sindical, mas, antes, é aplicada por ela”. O outro ponto importante em que Luxemburgo tocava dizia respeito à relação entre a luta política e a luta pela democracia: “hoje o movimento socialista operário é, e deve ser, a única estrutura para a democracia (…). O movimento socialista não está vinculado à democracia burguesa, mas, pelo contrário, o destino da democracia está vinculado ao movimento socialista.”

Por mais importante que o argumento de Luxemburgo fosse em desmistificar e desmascarar as teorias de Bernstein, como todos os argumentos puramente desmistificadores, ele deixa muito por dizer: ele era essencialmente negativo, e não reconstrutivo. Rosa compreendia que o bernsteinismo havia precipitado uma crise tanto na linha revolucionária quanto na teoria do partido. Uma das palavras-de-ordem mais bem sucedidas de Bernstein era que “o partido não é nada, o movimento é tudo”. No contexto em que ele havia sido desenvolvido, esse chamado significada a transição de um partido de quadros para um partido de opinião. Ainda assim, ele tinha o mérito de forçar a organização a encarar o problema dos movimentos de massas e de se afastar de uma preocupação excessiva com o funcionamento interno da vida do partido e a fetichização da autoconservação. Bernstein introduziu um elemento dinâmico na vida do partido e no planejamento burocrático como um crescimento organizativo autossuficiente. Outra de suas palavras-de-ordem favoritas era “vida longa à economia, abaixo a política”, que lembrava muito a palavra-de-ordem do anarco-sindicalismo francês “m’efiez-vous des politicens!”[2] Rosa Luxemburgo percebia que a sua crítica da linha do SPD e dos sindicatos poderia alimentar teorias orientadas para a abolição do partido, ou de qualquer partido, velho ou novo. Isso poderia ter levado a uma versão revisionista da noção anarco-sindicalista do espontaneísmo. Por outro lado, ela não queria renunciar nem à sua crítica da burocracia, nem à sua avaliação do papel positivo da espontaneidade. A sua polêmica antiburocrática não poderia ter fortalecido os braços daqueles que criticavam a política e a forma-partido em qualquer modalidade ou forma? E a sua atitude favorável ao espontaneísmo não pode ter fortalecido o espontaneísmo anarquista?

Foram considerações desse tipo que levaram Luxemburgo a propor uma solução intermediária que a levou ao que Lênin definiu como a teoria da “organização como processo” e da “tática como um processo”. De fato, em seu artigo de 1904, Questões organizativas da socialdemocracia russa, ela reforçava a ideia de que as massas fossem além do partido ao mesmo tempo em que enfatizava como nem tudo da velha organização deveria ser jogado fora. Ao elaborar sua linha político-organizativa, Luxemburgo devia estar levando em conta as condições nas quais uma corrente revolucionária teria que se movimentar na Alemanha, i.e. uma abordagem de “esburacar por dentro” no interior do SPD. Assim, seus esforços sociológicos estavam voltados para localizar uma camada de quadros nos bases do partido que, por suar origens e sua preparação, pudesse aprender melhor a lição da espontaneidade e entender melhor as tendências e direções das lutas que estavam acontecendo fora, ou independentemente da, organização. Uma nova explosão revolucionária seria necessária para que a situação interna do partido fosse desbloqueada. Na verdade, não é acidental que algumas das reservas de suas posições em 1904 tenham sido abandonadas em 1906, o ano de Greve de massas, partido e sindicatos, em que ela deu sua análise da revolução de 1905 na Rússia. Tendo feito uma fenomenologia das greves de massas russo-polonesas, ela chega a colocar o problema mais importante – a questão da liderança e da organização. As suas propostas, no entanto, ainda são muito gerais. O que temos aqui são, basicamente, parâmetros para a manutenção de uma relação correta com a espontaneidade. Ainda assim, eles não incluem indicações precisas sobre como organizar e dirigir a espontaneidade. Mais uma vez, Rosa se descobre presa entre a sociologia da organização e a teoria do partido. Em outras palavras, a liderança ainda permanece com os quadros do partido com bases nas fábricas. Na verdade, na sua análise das greves russas, ela cita enfaticamente o relato dos sindicatos de Petersburgo como um modelo em termos de organização e liderança. No entanto, enquanto podemos indicar essas limitações do pensamento de Luxemburgo, não devemos nos esquecer de que virtualmente todos os quadros jovens e trabalhadores que deram suas vidas pelo movimento dos conselhos operários encontraram sua orientação prático-teórica fundamental em seus trabalhos. Para que os operários e intelectuais da nova geração que tinha acabado de se juntar ao partido, a experiência russa de 1905 foi crucial. A “esquerda” do SPD exercia uma grande influência sobre eles, tanto pelo papel de liderança de Karl Liebknecht na organização de juventude – que mais tarde se tornou um centro de divergência tão grande que a liderança teve que dissolvê-lo – e pela posição fundamental de Rosa na escola de quadros do partido.

Outro ponto importante nos ensaios de Luxemburgo de 1906 é a última análise que ela dá da composição de classe na Alemanha, que, não acidentalmente, começa com os mineiros. Ao enfatizar a socialidade da luta nas greves de massas, ela marca a importância da unificação política que foi alcançada entre a classe operária, o proletariado pobre e o subproletariado

Uma vez que, para Lênin, a espontaneidade era o nível mais baixo e não, como no caso de Luxemburgo, o mais alto, a partir do qual começar uma discussão a respeito da organização política, quanto ele escreveu O que fazer?, ele já se achava além de toda uma série de problemas com os quais Rosa ainda lutava. Sem entrar em uma análise detalhada do panfleto de Lênin, marcarei os elementos básicos do pano de fundo e as grandes diferenças entre o bolchevismo e o movimento dos conselhos operários.

  1. Toda discussão organizativa é subordinada à linha política, e Lênin começa a chamar por uma reavaliação da teoria, para conseguir se esquivar das limitações do “ativismo empirista”. Em segundo lugar, ele marca de maneira tão precisa quanto possível a linha de divisão entre bernsteinismo/economicismo e a posição revolucionária. Finalmente, ele enfrenta o problema da relação entre liderança e espontaneidade e acusa o economicismo de ceder à espontaneidade e, portanto, se limitar a um papel de agitação nas lutas espontâneas.
  2. Na formulação de Kautsky, os intelectuais burgueses têm a tarefa de trazer a consciência socialdemocrata de fora, uma vez que ela não surge espontaneamente das massas operárias, cuja tendência natural é o sindicalismo.
  3. Começando com a definição de Engels das lutas econômicas e sindicais, como a “resistência contra o capitalismo”, Lênin marca os limites institucionais entre o sindicato e o partido. A tarefa do sindicato é lutar contra o capitalista individual em um determinado setor, enquanto “a socialdemocracia representa a classe trabalhadora não em sua relação com um grupo determinado de empregadores, mas em relação a todas as classes da sociedade moderna, ao Estado como uma força política organizada” (O que fazer?). Assim, as tarefas da agitação política e da denúncia não devem ser apenas estendidas às lutas econômicas dos trabalhadores, mas a todos os campos possíveis.
  4. A solução terrorista também é um erro, uma vez que ela não contribui de maneira alguma para a organização política e a liderança da espontaneidade, mas antes renuncia a elas.
  5. É quando ele chega a lidar com o “primitivismo” da organização socialdemocrata na Rússia que Lênin parece se envolver com os aspectos técnicos de uma organização clandestina. Ele reforça que o que ele considera como um aspecto especificamente político do trabalho, por oposição à agitação e à intervenção nas lutas da classe operária que são apenas aspectos desse trabalho – mesmo que os mais “essenciais” – e propõe ao partido um tipo de intervenção articulada e multifacetada similar à da socialdemocracia alemã.
  6. O impacto de O que fazer? Se deveu à extrema franqueza com que Lênin enfrentou problemas como a função dos intelectuais e dos operários. Embora Lênin não diga isso explicitamente nesse trabalho, o que é mais marcante é a grande distância teórica e o atraso histórico das correntes revolucionárias da Europa central em relação à experiência russa. Em um curto resumo da história do Partido Bolchevique que Lênin escreveu em O esquerdismo: doença infantil do comunismo, de 1920, ele indica como já em 1920 tanto ele quanto seus amigos observavam com algum desinteresse as primeiras formulações de uma nova esquerda europeia que ainda estava presa a questões que a experiência russa já tinha ultrapassado. O apoio tático dado a Luxemburgo não deve ocultar suas grandes diferenças, especialmente no que diz respeito à concepção do partido e da relação entre liderança e espontaneidade. Até 1918, Lênin se restringia a reconhecer o oportunismo bernsteiniano. Mais tarde, depois da consolidação do poder soviético, ele pôde lidar com Pannekoek, Daumig e, indiretamente, com a teoria da “organização como um processo” de Rosa, que ele novamente encarava como uma submissão à espontaneidade, como a junção do partido e dos movimentos espontâneos, e como criando uma confusão entre os operários politizados, operários em luta e quadros revolucionários profissionais.
  7. Uma coisa estava especialmente clara, i.e. que não era suficiente para um operário, por exemplo, ter uma visão correta da luta na fábrica, ou da luta em que ele estava materialmente envolvido em organizar, para fazer dele um quadro revolucionário, um revolucionário profissional. Não era suficiente inverter a função social que o sistema atribui a indivíduos na produção e transformá-la em uma minoria agindo no local de produção, para obter um quadro bolchevique. Por outro lado, a organização luxemburguista representava uma rede coordenada de minorias ativas, eventualmente capazes de derrubar a liderança reformista nas organizações de classe.

 

Mas essas eram todas as diferenças entre Lênin e Rosa? Até aqui, as reduzimos aos termos mais estruturais, e não conseguimos compreender outro elemento chave da posição de Lênin, i.e. que a distinção entre uma rede de minorias ativas e uma rede de revolucionários profissionais é simplesmente uma questão de encarar as fases históricas da luta de classes e, portanto, os diversos níveis de desenvolvimento da espontaneidade. Não é uma questão de negar as funções de minorias ativas para favorecer as de quadros profissionais. Antes, ambas devem ser vistas como as expressões do grau de crescimento do movimento: a última sendo mais atrasada do que a primeira. Se é assim, existem leis determinando o crescimento do movimento? É possível formular uma teoria científica do partido? A resposta de Lênin para isso foi que a natureza científica dessa teoria está totalmente em função do nível de certeza ao analisar as relações de poder entre classes em um momento histórico determinado.

O ponto não é preferir uma cristalização organizativa a uma outra, mas avaliar o nível exato atingido pela luta e o estado de desenvolvimento do partido. A própria distinção entre greve de massas, greve política e greve insurrecional é um exemplo prático dos três diferentes níveis de espontaneidade ou organização da luta, e das relações de poder entre classes. E se houverem leis, elas devem ser encontradas na experiência histórica do proletariado: as revoluções derrotadas. Assim como a construção de diques é sempre baseada nos maiores níveis atingidos pelas marés, a ciência do partido deve compreender teoricamente todos os níveis de luta e a organização atingidos até aqui, para retomá-las e superá-las ao mesmo tempo. Cada novo e mais avançado nível da luta é respondido por uma reorganização do sistema capitalista como uma resposta dialética ao confronto de classes. Assim, a ciência do partido é sempre medida pelos níveis históricos atingidos pela organização capitalista.

A hipótese revolucionária busca antecipar teoricamente essas fases de luta, que devem ser conduzidas praticamente. Ainda assim, as melhores hipóteses são ultrapassadas por níveis de luta imprevisíveis. Essa era a situação em que Lênin se encontrou em 1905, com a ascensão dos sovietes durante a fase soviética de desenvolvimento do partido, em que a própria classe trabalhadora se apresentou como um “poder”.

Muito foi dito sobre a polêmica entre Lênin e Luxemburgo a respeito do problema da centralização e do direito de divergência da minoria: na historiografia do movimento operário, Luxemburgo é acusada de democratismo regressivo, ou é exaltada por grupos anti-stalinistas por ter antecipado a luta contra as burocracias repressivas e oportunistas. Essa polêmica foi usada de uma maneira contrarrevolucionária principalmente pelos socialistas de esquerda. Talvez toda essa historiografia devesse ser abandonada para compreendermos melhor o sentido das posições de Luxemburgo. Ainda que fortemente ligada à experiência russo-polonesa, ela se encontrou confrontada pelo problema de criar uma fração revolucionária em um partido de massas com muitas possibilidades, como o SPD. Rosa percebeu que era impossível forçar a direção das lutas operárias  para além das políticas oportunistas do SPD simplesmente contando com meios políticos e minoritários sem inverter as relações entre classe e sindicatos. Ela percebeu que em uma sociedade conflituosa, como a Alemanha do Kaiser Wilhelm, isso não poderia ser feito com os meios de Lênin. Além disso, ela estava perfeitamente atenta para a distância cada vez maior entre “operários e políticos”: entre o proletariado em luta e os políticos profissionais. Esse não era um fenômeno limitado ao anarco-sindicalismo francês. Na convenção de fundação do IWW, Heywood gritou: “Todos no IWW! Fora com os políticos!”. Rosa Luxemburgo percebeu que a organização política entre a classe trabalhadora foi tocada apenas pelos quadros operários do partido e que, na luta subversiva, apenas eles poderiam ter evitado uma ruptura total entre o controle operário completo e a direção política. Apenas aqueles quadros poderiam ter derrotado o gradualismo sindical e o oportunismo de parlamentares e funcionários assalariados. Mas provavelmente ela não percebeu que, naquele momento, o problema teria sido mais quebrar os sindicatos do que o partido.

Como Lênin e todos os políticos europeus na época da Segunda Internacional, Rosa considerava os sindicatos sagrados e repetiam ad nauseam que mesmo os sindicatos europeus mais oportunistas eram, no entanto, organizações “operárias” e não um punhado de gangsters como o sindicato de Gompers nos EUA. Assim, a fração que Rosa queria criar era essencialmente uma rede de quadros políticos operários fortemente ligados às lutas de fábrica e relacionados de maneira ambígua aos sindicatos. À palavra-de-ordem de Lênin “primeiro o partido, e então a revolução”, ela respondia “primeiro o controle operário do partido, então a revolução”. O que, para Luxemburgo, era um problema de composição social do partido, para Lênin era um problema de programa, ou da política do partido. Para Lênin, a orientação revolucionária dos operários deveria ser conseguida ligando militantes a esse programa, os disciplinando com a centralização. Rosa e Lênin falavam para dois tipos diferentes de classe operária: eles falavam contra tipos diferentes de reformismo.

As condições para a organização de um movimento operário político nos EUA eram marcadamente diferentes. É sob essa perspectiva que temos que avaliar a posição de DeLeon e a prática do IWW. A relação entre DeLeon e o IWW deve ser esclarecida antes, no entanto. Embora ele fosse considerado como o ideólogo do movimento e em certa medida aquele que antecipou a organização dos conselhos operários, DeLeon, na verdade, ocupava uma posição minoritária no IWW. De fato, três anos depois de sua fundação, ele foi expulso do IWW como o líder de um partido político. Em Detroit ele fundou outro IWW, progressivamente mais adequado às realidade do movimento – acima de tudo, em relação aos problemas da luta política. A sua fama entre os líderes revolucionários europeus, que garantiu a ele a homenagem de Lênin depois da revolução, se deu provavelmente por conta da grande afinidade de sua abordagem com a situação na Europa. Ainda assim, as suas contribuições “teóricas” principais se deram precisamente quando ele recusou a abordagem e as tradições da Segunda Internacional, para lidar com a realidade formidável da luta de classes nos Estados Unidos. É impossível comparar a maturidade da classe empresarial americana e seu estágio de organização produtiva em correspondência com os europeus. Os EUA estavam diante de uma entrada gigantesca de trabalho no campo do trabalho diretamente produtivo. Os grandes esforços foram concentrados na organização do trabalho: todas as ferramentas técnicas para um aparelho eficiente já estavam disponíveis.

Pretensões humanitárias e a arrogância autoritária eram igualmente estranhas à classe capitalista americana. Esse era um processo massivo não apenas limitado a algumas ilhas industriais. Uma sociedade dessas parecia liberar qualquer resíduo de atraso institucional ou produtivo. Diferentemente da situação europeia, a luta entre trabalhadores e proprietários, entre a classe operária e os proprietários sociais, não separada por uma barreira de instituições políticas. Um nível extremamente alto de cooperação social, uma abordagem global da divisão social do trabalho, uma habilidade inexaurível de transformar o conflito em racionalização e desenvolvimento, o controle sobre a força de trabalho exercido diretamente pelo aparelho produtivo sem qualquer mediação de sindicalismo, um uso político da mobilidade de massas: todas essas coisas davam ao sistema americano características marcantes ao ponto de relegar a Europa ao papel de uma província aborrecida. Todas as liberdades civis e políticas haviam sido reduzidas única e exclusivamente à liberdade capitalista – a liberdade de trabalhar – e levaram a uma identificação total da fábrica e da sociedade. Consequentemente, havia uma grande redução do espaço político, entendido no sentido tradicional de representação e mediação. E tudo isso acontecia sob a pressão de uma luta operária frontal.

O caráter primitivo, a superficialidade ou a obviedade dos escritos de DeLeon, tão diferentes da falação pretensiosa de tantos líderes europeus, é uma distorção europeia. DeLeon, e antes dele os agitadores “trabalhistas” que dirigiam o IWW, entendiam muito bem como, naquela situação, a linha política revolucionária e a organização deviam assumir características de massa específicas e que, portanto, a institucionalização da vanguarda era uma coisa completamente questionável. Ainda menos prática era uma direção centralizada entendida como uma organização militar distribuindo ordens por canais hierárquicos. Na verdade, a relação entre direção e espontaneidade era invertida, uma vez que se tratava de tornar o operário coletivo capaz de agir de maneira automática, ou antes, autônoma. Isso explica o programa sobre a luta como o único organizador coletivo envolvido em uma imensa revolução cultural, baseada em uns poucos princípios: salário e horas de trabalho, greves selvagens, nenhuma negociação direta, ação de massas violenta, nenhum vínculo com a agitação ou com a mobilidade dos agitadores e igualitarismo.

Talvez a diferença entre o europeísmo de DeLeon e os líderes do IWW esteja inteiramente em sua busca desesperada por um nível “político” acima e além da pura luta de massas. Era provavelmente nisso que ele estava além dos outros. Seguindo todos os intelectuais socialistas, ele havia começado por conceber esse nível em termos de eleições, Mas o vagabundo ou o wobbly responderam a ele que isso era uma coisa burguesa, para pessoas com óculos e cavanhaques. Para ele, que não era nada além de um proletário, a política era uma relação de poder com o patrão. Nenhum wobbly nunca se preocupou em pensar sobre como seria o futuro da sociedade. Isso, no entanto, era de grande interesse para DeLeon – um intelectual que queria saber com o que sua atividade iria se parecer depois da tomada do poder: é por isso que ele fantasiava tanto com uma sociedade futura gerida por sindicatos. É por isso que Gramsci o tomou, erradamente, como um precursor dos conselhos operários.

Termos como partido, ideologia, utopia, que eram as senhas da Segunda, e mais tarde da Terceira, Internacional, eram completamente estranhas à luta de classes americana. Elas aparecem em DeLeon apenas como elementos secundários, esmagados por uma realidade de luta social imposta e desejada pelos inúmeros agitadores sem nome que colocaram em movimento todas as camadas do proletariado americano. Em DeLeon podemos observar essa perda gradual de autonomia da teoria: a extinção de um certo nível político. Essa é uma instância em que a análise dos escritos de um teórico nos dá menos do que a descrição das lutas do IWW. Além da recusa de negociação, o que é mais marcante na experiência do IWW é a rejeição de toda institucionalização do conflito, a recusa em assinar contratos de maneira a periodizar a luta e a recusa em considerar a luta como um assunto de fábrica, buscando principalmente desenvolver as possibilidades de luta da comunicação social. O resultado disso era uma organização que, de maneira parecida com a Camere del Lavoro italiana, era baseada em princípios territoriais. Ainda assim, tudo isso é fundamentalmente parecido com as lutas europeias e a abordagem dos conselhos operários. Esse princípio comum é o fato de que a luta e a organização encontram suas bases ao subverter a condição material em que o capital coloca o proletariado: na Europa, ao transformar as aristocracias operárias em partidos de vanguarda, e nos EUA ao transformar a mobilidade em um vetor da organização operária. Porque a vagabundagem era a acusação principal pela qual os quadros do IWW era mandados para prisão? Porque o estilo de trabalho do agitador wobbly era moldado pela existência de um proletariado móvel, um dia trabalhando na construção, no outro desempregado, no dia seguinte fazendo a colheita da temporada, depois operário têxtil ou garçom nos trens? Os organizadores dos trabalhadores sazonais os seguiam em suas migrações da fronteira do México ao Canadá. Assim, a noção fordista de um salário social vem dessa abordagem proletária em relação à renda que não a cristaliza em divisões setoriais, mas em uma abordagem igualitária da renda.

Portanto, os dois pilares da organização do IWW eram o internacionalismo e o igualitarismo. O que é completamente estranho é o que chamamos de controle de fábrica, porque uma fábrica que não fosse a fábrica social era estranha ao mundo dos wobblies. Assim como era a relação com a qualificação. Assim, antes que a massificação do trabalho fosse introduzida na linha de montagem, o operário massa era uma realidade subjetiva moldada pelos agitadores wobblies. Era um programa de confrontação total com a fábrica social e o capital social. Diferente nos exemplos europeus, a história das lutas americanas é provavelmente a única em que o movimento operário não buscou nem uma remodernização das forças produtivas nem uma organização das forças produtivas mais atrasada do que a do capital em uma fase de desenvolvimento determinada. Provavelmente, o poder operário planejado pelos wobblies buscava deixa a administração dos negócios para os chefes e deixar a classe operária determinar o trabalho socialmente necessário e os salários. É por isso que, mais do que entregar uma lista de exigências para ser debatida na mesa de negociações, eles apenas fixavam os salários e horas de trabalho unilateralmente, os escreviam em pedaços de papel nos portões das fábricas e deixavam que os patrões viessem e tomassem nota para respeitar a decisão, executando, portanto, as ordens dos trabalhadores. Quantos operários europeus, aconselhados por intelectuais que diziam ser seus amigos e atraídos pela ideia de se sentar por trás de uma mesa e mandar os auxiliares de escritório para o tribunal, depois não se descobriram sentando em mesas de escola noturnas depois de oito horas na fábrica, arrependidos de não terem pegado uma arma ou de deixar que ela fosse tirada das suas mãos por esses mesmos intelectuais?

Além de uma ideologia anti-igualitária do trabalho, a grande diferença entre o mundo wobbly e o do quadro bolchevique europeu estava precisamente na relação entre luta, revolução e poder. O que não havia no IWW era exatamente a concepção da revolução como um ato de administração do poder: a substituição de uma máquina de Estado por outra. Em outras palavras, era a ditadura do proletariado e a do partido proletário sobre a sociedade. Quando o modelo comunista ganhou a dianteira na organização wobbly? Devemos apontar que homens como Foster, futuro secretário do Partido Comunista Americano, vieram do IWW e que ele começou ali uma luta de frações em conexão com a discussão sobre a centralização. Mas esse ainda não era o ponto chave: a questão essencial era se o IWW deveria ter continuado sua prática anti-institucional, ou se ele deveria aceitar um espaço específico de negociação, normas contratuais, e, portanto, uma organização mais estática e estável. Em outras palavras, a questão era se o IWW deveria ter se tornado um sindicato tradicional como um primeiro passo para a convergência com a AFL[3], criando assim as premissas para uma organização dos trabalhadores unificada nos EUA e deixando a porta aberta para uma organização de partido específica. Na medida em que o ciclo de lutas se enfraqueceu, surgiram problemas de defesa da repressão, de modo que a resistência assumiu a prioridade em relação ao ataque e o modelo comunista apareceu como a única solução possível. O Partido Comunista Americano conseguiu assumir boa parte do legado dos wobblies e integrá-lo na grande operação da CIO[4] no período Roosevelt.

Um último, mas extremamente importante, problema é o da relação entre o IWW e os negros americanos. Provavelmente é necessário aqui voltar ao período entra a era das plantations e o fim da Guerra Civil para buscar a vanguarda que levou adiante as primeiras lutas nos EUA. A figura social no centro do primeiro ciclo de insubordinação é o negro que fugiu e, mais tarde, o mineiro sulista negro e o operário negro nos primeiros grandes moinhos de aço em Birminghan, ao lado dos trabalhadores brancos condenados legalmente. Nem o Knights of Labour nem a AFL se aproximavam dessas camadas do proletariado, muito menos das massas negras reduzidas à peonagem pela crise das plantations.

A repressão capitalista na virada do século se voltava exatamente contra essas camadas. O IWW nunca entrou em contato com essas massas precisamente porque a força de trabalho negra nunca tinha sido uma força de trabalho livre. Ela permaneceu presa pela pobreza do sul e até a Segunda Guerra Mundial não era permitido que ela se movesse pelas grande artérias industriais do norte e do leste. Se um negro trabalhava em uma mina de carvão na Pensilvânia, no Alabama ou no Kentucky, ele se juntava ao United Mine Workers. A Western Federation of Labour, da qual veio o IWW, era composta de mineiros de cobre e ferro de Utah, do Arizona e Montana. Portanto, os dez milhões de imigrantes que o IWW tentou organizar, com sucesso, representavam para o capital americano um rio de carne humana que separava, e manteve separados os negros do sul e as fábricas do norte. Um dique de dez milhões de proletários brancos evitava que os negros violassem a exploração metropolitana. O IWW está historicamente ligado a esse esforço colossal de defesa por parte do capital branco. Isso explica a função da iniciativa revolucionária do IWW no plano tático-estratégico do capital dos EUA.

 

Guerra e revolução

 

Em agosto de 1914, a guerra imperialista dividiu o movimento operário em três grandes correntes: os socialdemocratas, que defendiam o patriotismo e a colaboração de classe como uma passagem tática para uma eventual administração da sociedade em um período de reconstrução; os revolucionário pacifistas, incluindo todo o movimento de Zimmerwald que se unia nas questões da resistência de classe à guerra e a superexploração; e os bolcheviques, ou melhor, Lênin e alguns outros, que previam a possibilidade de transformar a guerra imperialista em uma guerra civil. Aqui, o militante bolchevique assumiu seu papel especificamente militar na insurreição. Sempre se falou da traição socialdemocrata. Na verdade, ela foi um plano lúcido e cínico de co-gestão entre capital e sindicatos, entre o Estado burguês e o partido socialdemocrata. Logo depois de ter votado os créditos de guerra, os “representantes operários” na Alemanha criaram uma série de órgãos de junta, tanto nas indústrias quanto nos níveis mais gerais como um primeiro elo de uma corrente que com o Arbeitsgemeinsschaft de 1918 iria chegar à garganta da classe operária para enforcar o movimento dos conselhos operários.

A guerra precisava da colaboração dos operários e os socialdemocratas se tornaram tanto mais patriotas e insistentes para se apresentarem como um grupo político alternativo. É impossível explicar de outra maneira o ímpeto e a determinação com que empregadores e o partido socialdemocrata agiram depois de 1918, nem o violento ressentimento anti-sindical dos quadros dos conselhos operários: durante a guerra, os sindicatos haviam administrado e garantido a superexploração nas fábricas e haviam delatado operários subordinados à polícia. No período pós-guerra, a organização tradicional é atacada por uma violenta vingança operária exatamente em seu papel de um grupo de servidores do Estado. A ideologia do movimento de conselhos operários, sua acusação genérica do “político profissional”, a justaposição da figura social dos assalariados e do funcionário de partido, i.e. do intelectual na política, terminou engolindo tanto a direita quanto a esquerda. Rosa Luxemburgo não pôde nem participar da primeira convenção de conselhos operários: só depois de uma longa batalha foi permitido que ela fosse como uma observadora.

A autonomia operária colocou o problema das relações entre eles e o grupo de revolucionários profissionais dedicados. Não sabemos se o destino de Luxemburgo – expulsa da convenção dos quadros operários que seus escritos ajudaram, em grande parte, a desenvolver – e Lênin deveria ser ligado ao fato de que Lênin e seu grupo tinham armado os trabalhadores, enquanto o grupo Espartaquista continuou a ver a organização como coordenação e resistência, e a recusa do trabalho como a única arma adequada do trabalhador. A essência do leninismo muda da relação entre espontaneidade e partido para a relação entre partido e insurreição.

Na Alemanha, o ponto central é constituído pela presença da formação ambígua e contraditória que era o USPD: o partido socialdemocrata independente que incluía kautskistas e líderes dos conselhos operários, tanto centristas quanto espartaquistas. Diferente do que Liebknecht afirmava, a ambiguidade do USPD não estava em sua participação no parlamento (já em 1915 o líder espartaquista havia insistido na necessidade de “ações de massas extraparlamentares” no Spartakusbriefe), mas em sua mistificação da autonomia operária. Os quadros sindicais dos metalúrgicos que organizaram as primeiras greves na guerra em janeiro de 1918 estavam sob o guarda-chuva do USPD, e foi no interior do USPD que a batalha ideológica sobre o movimento de conselhos aconteceu.

O programa é bem conhecido: a transformação da autonomia operária em um contra-poder, i.e. em uma organização democrática de trabalhadores assalariados e a concepção dos conselhos operários como os órgãos de um poder operário democrático fundado na representação direta. Era precisamente esse o sentido da socialização de Kautsky: o esquema formal da democracia burguesa aplicado à autonomia operária. Essa era essencialmente a concepção de Dauemig do controle operário da produção, autogestão, a construção de um poder alternativo que iria arrancar de fato o poder do Estado, uma concepção de um poder da classe operária apenas em termos de aceitação ou recusa do trabalho, i.e. apenas em termos de chantagem operária. Lênin atacava Dauemig muito duramente precisamente como o teórico da simples autonomia operária. Na época, Dauemig era o púnico entre os líderes de conselhos que queria reintroduzir uma perspectiva política, i.e. uma tática voltada para determinar a passagem específica das relações de poder.

É um erro encarar o movimento de conselhos operários como uma crítica das formas do poder institucional burguês. Essa pode ser a sua forma ou o seu aspecto ideológico. O verdadeiro caráter revolucionário do momento dos conselhos operários na Alemanha está no poder dos operários de provocar uma crise e congelar o desenvolvimento capitalista. Isso era compreendido muito bem pelas raposas velhas em Versalhes. A imposição “daquele” tratado à Alemanha era praticamente exigida pela necessidade de privar a classe operária das bases materiais de sua própria existência. Aqueles que escreveram as cláusulas punitivas para a Alemanha operavam exatamente no domínio da dupla existência da força de trabalho, i.e. como força de trabalho inevitavelmente ligada ao processo material de produção e como uma classe irredutivelmente antagonista a esse desenvolvimento. Naquela época, Keynes, com seus apelos “aflitos”, foi o estrategista que observou mais além e não o político tático que queria acima de tudo acertar as contas com a classe operária na ofensiva.

Em Versalhes, o capital internacional andou sobre um fio de navalha, e arriscou deter o processo de sua acumulação em sua zona mais fraca: a Alemanha. Ele bloqueou o processo de desenvolvimento de sua composição orgânica para deter o crescimento da mercadoria da força de trabalho. É nesse sentido que ele entrou no campo de batalha das lutas de trabalhadores que o movimento dos conselhos operários ajudou a construir.

O próprio capital destruiu a forma monetária das relações de troca: a inflação alemã tirou poder, na forma de salários, das mãos da classe. Era a primeira vez na história que a crise capitalista não assumiu o caráter cíclico, mas congelou o desenvolvimento geral. Essa era a primeira crise capitalista determinada pelo impacto dos trabalhadores no processo de criação de valor. As possibilidades futuras para o movimento dos conselhos operários estavam todas aqui. Versalhes e a NEP foram, ao fim, dois movimento paralelos: a primeira era uma decisão do cérebro capitalista para deter o desenvolvimento com a finalidade de asfixiar o crescimento da classe; a segunda era uma decisão do cérebro operário para estimular o desenvolvimento com a finalidade de reconstituir as bases materiais para o desenvolvimento da classe.

Aqui, a defesa da instituição dos conselhos operários era o véu que cobria essa luta mortal entre capital e trabalho. Não era difícil para a burocracia sindical administrar essa defesa nos termos da democratização dos sindicatos. A democracia sindical era tão contrária à autonomia operária quanto era parte dela. Assim, Noske, por exemplo, administrou primeiramente o motim operário-militar de Kiel aceitando a ideologia do movimento dos conselhos operários, e então foi para Berlim organizar os guardas brancos. O movimento de conselhos imediatamente se descobriu na defensiva de dezembro de 1918 em diante. Tão logo foram criados, os conselhos tiveram que ser “defendidos”: o avanço do poder operário e a crítica de massas contra a “política” eram atitudes essencialmente defensivas. O SPD jogou no movimento dos conselhos – o movimento de novas representações – todos os seus servidores sindicais e do partido, especialistas em moções, convenções e no jogo parlamentar. Os conselhos assumiram novamente o tema da ação direta depois que perderam a batalha das maiorias. As políticas reformistas ganharam em relação à recusa do trabalho. Velhos cérebros teóricos do partido, com Kautsky, Hilferding e Bernstein, foram deixados no USPD para plantar a condução no campo da autonomia operária. Eles foram silenciosamente deixados para construir a utopia de uma democracia do trabalho da mesma maneira que o capital deixou Rathenau fantasiar com utopias do mesmo tipo. O que faltava no período dos conselhos era um poder armado da classe operária que não fosse apenas uma auto-defesa, uma vez que durante a guerra os quadros revolucionários no exército haviam pregado simplesmente a resistência à guerra ou o pacifismo contra o militarismo e no fim da guerra exigiram apenas a abolição das hierarquias. Na Rússia, por outro lado, os bolcheviques haviam assumido a tarefa da formação do Exército Vermelho.

Quando líderes sindicais e grandes empregadores formaram uma aliança no fim de 1918, eles já tinham diante deles uma imagem completa dos mecanismos da revolução na Rússia. Assim, sua primeira preocupação era organizar e administrar a desmobilização. O operários tinha que deixar as armas, eles diziam – e retornar tão logo quanto possível para seu emprego. Um programa específico de desarmamento contrarrevolucionário foi proposto com a mesma ideologia pacifista, nos mesmos pontos anti-militaristas que a Segunda Internacional e em grande medida pelo participantes do Zimmerwald. As greves de massas eram admitidas, mas a insurreição não.

Assim, o movimento dos conselhos operários falhou, não no terreno da gestão do trabalho produtivo, mas no da relação entre greve de massas e insurreição, ou entre a recusa do trabalho e a insurreição. Ouvimos sempre que a determinação dos operários na crise de 1918 a 1923 prolongou a recusa do trabalho como um movimento contínuo e engatinhando, sem criar o partido. Ainda assim, sem essa determinação da crise e sua luta contra o desenvolvimento, o partido não é revolucionário. Por isso a falha do movimento dos conselhos operários não adiou o problema da relação entre a autonomia e o partido de profissionais, mas antes o da relação entre a luta contra o desenvolvimento e a insurreição, por um lado, e o poder operário armado pelo outro. Vimos na história recente quantas vezes a insurreição foi, pelo contrário, a premissa para uma retomada do desenvolvimento. O leninismo é, talvez, o limite extremo atingido pelo nível insurrecional e pela autonomia de classe, em que o partido ainda é uma minoria ativa.

O pensamento maoísta foi mais longe, concebendo a classe como o partido, o partido como a maioria do povo, o partido como maioria social, e movendo o terreno da insurreição de um breve golpe de Estado para uma guerra prolongada. Com o maoísmo, a insurreição se torna um termo espontâneo.

 

[1] [NT]: Termo que se refere aos membros do IWW.

[2] [NT] “Desconfiem dos políticos!”

[3] [NT]: Alberta Federation of Labour.

[4] [NT]: Congress of Industrial Organizations.

 

Tradução para o português brasileiro do inglês, feita de forma voluntária pelo Coletivo Autonomista!. Texto retirado de Telos, nº 13, outono de 1972.
Você pode contribuir enviando e-mails indicando erros de tradução ou sugestões de melhoria para autonomistablog@gmail.comEste e outros textos de tradução do Coletivo Autonomista! estão disponíveis em:https://autonomistablog.wordpress.com/

Todo conhecimento deve ser livre. Por isso, não há restrições à cópia e distribuição desse material. Compartilhe!

Deixe um comentário